Imagine estar completamente envolvido com um vídeo: o momento do beijo aguardado há temporadas, a vitória improvável do atleta, o desfecho emocional de um documentário. Agora imagine que logo após esse clímax, entra um anúncio — bem naquele instante em que sua atenção está no pico.
Essa não é uma coincidência. É o futuro que o YouTube acaba de anunciar com a nova tecnologia Pick Points, que usa inteligência artificial para identificar momentos de maior impacto emocional em vídeos e posicionar anúncios exatamente nesses pontos.
É uma jogada ousada — e polêmica — que promete transformar completamente a forma como interagimos com conteúdo online.
O que é o Pick Points e como funciona
Apresentado oficialmente no evento YouTube NewFronts 2025, em Nova York, o Pick Points é uma ferramenta baseada na IA Gemini, desenvolvida pela Google, que analisa vídeos frame a frame para identificar os momentos de pico emocional.
Esse mapeamento não se baseia apenas em palavras-chave, mas em uma análise multimodal que considera:
Expressões faciais dos participantes no vídeo
Tom e ritmo de voz
Composição visual e transições
Trilha sonora e ambientação narrativa
Reações anteriores de audiência a vídeos semelhantes
Mais que identificar emoções como alegria, tensão, tristeza ou surpresa, o sistema entende quando e como essas emoções acontecem, permitindo ao YouTube inserir anúncios nos momentos exatos em que o espectador está mais envolvido emocionalmente.
Por que isso importa — e por que pode incomodar
A estratégia de anúncios emocionalmente direcionados é baseada em pesquisas de marketing que mostram que:
Momentos de alta carga emocional aumentam a memorização de mensagens.
Pessoas emocionalmente envolvidas estão mais suscetíveis à persuasão.
Campanhas baseadas em emoções têm maior retorno sobre investimento do que aquelas baseadas apenas em argumentos racionais.
Ou seja: colocar um anúncio logo após uma cena marcante pode aumentar o impacto da propaganda — e a chance de você lembrar dela depois.
Mas isso também abre um dilema ético. O YouTube está literalmente mapeando estados emocionais para maximizar lucro. E por mais que a empresa afirme que não está analisando o comportamento do usuário, e sim apenas o conteúdo dos vídeos, o impacto psicológico real é sobre você, o espectador.
Exemplo prático: um comercial após a lágrima
Imagine que você assiste a um vídeo sobre reencontros familiares. A cena mais tocante termina com o abraço entre mãe e filha. Imediatamente depois, surge um anúncio da companhia aérea oferecendo passagens promocionais para “reconectar com quem você ama”.
A mensagem faz sentido. O timing, emocionalmente, é perfeito. Mas a pergunta que fica é: isso foi espontâneo ou programado?
O Pick Points automatiza essa programação — e isso altera a relação entre conteúdo, criador e audiência.
Impacto nos criadores de conteúdo
Para os criadores, o sistema representa tanto uma oportunidade quanto uma ameaça:
Mais engajamento publicitário pode significar maior monetização.
Mas eles não terão controle direto sobre onde os anúncios serão inseridos.
E isso pode interromper o ritmo narrativo dos vídeos, prejudicando a experiência.
Se o público sentir que está sendo manipulado ou que os vídeos estão sendo fragmentados por publicidade emocional, isso pode afetar a fidelidade da audiência e os próprios indicadores de retenção de vídeo.
Riscos psicológicos e o paradoxo do engajamento
Pesquisadores em psicologia alertam que o uso de IA para detectar estados emocionais pode explorar vulnerabilidades de forma preocupante. Entre os riscos:
A regra do pico-fim sugere que as pessoas se lembram mais dos momentos de pico emocional e dos finais de uma experiência. Um anúncio mal colocado pode alterar a lembrança do vídeo como um todo.
Pessoas com ansiedade, depressão ou estresse emocional tendem a consumir certos tipos de conteúdo, e podem ser mais suscetíveis à persuasão nesses momentos.
O uso dessas técnicas em conteúdo sensível ou emocionalmente carregado pode ter efeitos negativos não intencionais sobre a saúde mental do usuário.
O paradoxo é que a mesma estratégia que aumenta a eficácia publicitária pode comprometer a confiança do público e a qualidade da experiência de conteúdo.
Privacidade, manipulação e regulação
Embora o YouTube diga que a IA analisa apenas o conteúdo do vídeo, não os dados do espectador, a linha entre análise de conteúdo e manipulação emocional fica cada vez mais tênue.
Essa nova forma de targeting levanta questões importantes:
Quem define o que é um momento emocional?
Qual o limite entre engajamento e exploração emocional?
O usuário terá opção de desativar esse tipo de anúncio?
Deveria ser obrigatório sinalizar esse tipo de inserção?
Com a publicidade se tornando cada vez mais personalizada e emocionalmente responsiva, debates sobre ética e transparência se tornam urgentes — especialmente em plataformas que moldam o consumo de informação de bilhões de pessoas.
Concorrência, e-commerce e o futuro do vídeo interativo
O Pick Points não é uma iniciativa isolada. Faz parte de uma estratégia mais ampla do YouTube para:
Concorrer com o TikTok e Instagram Reels, que já oferecem publicidade interativa e altamente personalizada.
Integrar e-commerce aos vídeos, com anúncios que permitem comprar produtos diretamente da tela.
Manter os usuários engajados dentro do ecossistema Google, usando a IA para prever, guiar e influenciar comportamentos.
Na prática, estamos vendo a fusão entre entretenimento, marketing e dados emocionais — um novo tipo de experiência interativa, mas que exige atenção e crítica por parte dos usuários.
Conclusão: o futuro da publicidade é emocional — e programado por IA
O YouTube Pick Points representa o início de uma nova era onde a inteligência artificial não apenas entende o que assistimos, mas como nos sentimos enquanto assistimos.
Para anunciantes, é ouro puro: maior impacto, mais conversões, campanhas emocionalmente afinadas.
Para o público, é uma faca de dois gumes: mais relevância, mas também mais invasão emocional.
Para criadores, é uma chance de ganhar mais — ou perder o controle sobre como suas histórias são entregues.
O desafio é encontrar o equilíbrio entre eficácia comercial, integridade criativa e respeito emocional.