Imagine um sistema onde leis não são mais escritas por políticos, comissões ou juristas, mas por uma inteligência artificial capaz de analisar milhões de dados em tempo real, identificar gargalos na sociedade e economia, e sugerir — ou até implementar — alterações legislativas em dias, não meses. Essa não é uma ideia futurista. Já está acontecendo. Em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, uma iniciativa pioneira está colocando algoritmos no centro do processo legislativo nacional, mudando radicalmente a forma como governos operam.
Os Emirados tornaram-se o primeiro país do mundo a adotar oficialmente um sistema de IA como colegislador ativo, com autoridade para revisar e propor leis com base em dados concretos, em vez de negociações políticas ou ideologias. O projeto foi anunciado e aprovado pelo Gabinete Federal sob a liderança do xeque Mohammed bin Rashid Al Maktoum, vice-presidente e primeiro-ministro do país, e também governante de Dubai. A proposta vai muito além de usar IA como ferramenta auxiliar: ela transforma a própria lógica da governança ao delegar a inteligência algorítmica uma função decisiva na criação do arcabouço jurídico nacional.
Como funciona o sistema?
Para coordenar essa revolução silenciosa, foi criado o Escritório de Inteligência Regulatória, um novo órgão que ficará responsável por integrar as leis federais e locais com bancos de dados judiciais, procedimentos administrativos e políticas públicas. A IA, equipada com algoritmos de processamento de linguagem natural, redes neurais avançadas e modelagem preditiva, monitora impactos sociais e econômicos em tempo real, em mais de 20 setores diferentes — incluindo saúde, educação, transporte e meio ambiente. Se o sistema identificar que uma determinada legislação está gerando distorções, se tornando obsoleta ou contraditória, ele é capaz de propor alterações de forma autônoma.
Essa capacidade analítica não se limita ao nível local. A plataforma também está conectada a centros de pesquisa internacionais, permitindo comparar a legislação dos Emirados com as melhores práticas e diretrizes de países mais avançados. Isso cria um ambiente dinâmico, onde a legislação local se atualiza com base em benchmarks globais — uma funcionalidade que seria praticamente impossível de realizar manualmente, em tempo real, com equipes humanas.
Por que isso é tão revolucionário?
Tradicionalmente, criar uma nova lei envolve um processo demorado e altamente burocrático: pesquisa, consultas públicas, articulações políticas, redação, votação, aprovação e, por fim, regulamentação. Dependendo da complexidade do tema, esse ciclo pode levar meses ou até anos. Com a IA, os Emirados esperam reduzir esse tempo em até 70%, o que representa uma mudança de paradigma na velocidade de resposta do Estado.
Além disso, há uma ambição mais profunda por trás desse sistema: eliminar inconsistências legais, evitar sobreposições de normas e agilizar atualizações constantes em áreas sensíveis à inovação tecnológica. Em outras palavras, as leis deixam de ser documentos estáticos para se tornarem sistemas vivos e adaptativos, moldados por dados reais, em ciclos contínuos de revisão.
Mas e os riscos?
É claro que essa transição vem acompanhada de críticas e dúvidas legítimas. Um dos principais desafios diz respeito à confiabilidade dos sistemas de IA. Mesmo os modelos mais avançados, como o GPT-4 ou o Gemini da Google, ainda são suscetíveis a erros, alucinações e viéses — produtos dos dados nos quais foram treinados. Como garantir que um algoritmo legislador não crie normas baseadas em premissas equivocadas, tendências discriminatórias ou interpretações distorcidas da realidade?
Outra preocupação está ligada à transparência. Leis feitas por humanos, embora muitas vezes lentas e ineficazes, são, em tese, sujeitas ao escrutínio público e parlamentar. Quando o processo se torna algorítmico, quem audita os códigos? Quem decide quais dados a IA pode usar? Como garantir que interesses políticos ou corporativos não influenciem silenciosamente a forma como o sistema “interpreta” a sociedade?
Além disso, é importante lembrar que os Emirados Árabes têm uma estrutura política centralizada, com baixa participação popular nos processos decisórios. Em democracias mais abertas e descentralizadas, como Brasil, Índia, Alemanha ou Estados Unidos, a introdução de uma IA com poder legislativo exigiria reformas institucionais profundas e uma discussão muito mais ampla com a sociedade civil.
Oportunidade ou distopia?
Apesar dos riscos, o potencial de transformação é real. Um sistema legislativo mais responsivo pode criar políticas públicas melhores, mais rápidas e baseadas em evidências. Reduzir a dependência de ciclos políticos ou interesses eleitorais pode gerar leis mais focadas na solução de problemas concretos. Além disso, automatizar a detecção de inconsistências legais pode diminuir custos jurídicos, litígios e insegurança regulatória — um grande entrave ao investimento em muitos países emergentes.
Outro benefício potencial está na redução de corrupção e lobby, já que o algoritmo operaria sob critérios objetivos, e não sob pressões de grupos de interesse. Mas, para que isso aconteça de forma ética, é essencial que os sistemas sejam auditáveis, regulamentados e orientados por valores humanos claros, como justiça, equidade e transparência.
O contexto estratégico dos Emirados
Essa iniciativa faz parte de uma visão maior de posicionar os Emirados como um hub global de inovação em IA e governança digital. O país já lançou a plataforma MDX, que gerencia investimentos estratégicos em inteligência artificial, incluindo parcerias com empresas como a BlackRock, e adicionou especialistas em IA ao seu conselho regulador. A ideia é clara: usar a tecnologia não só para automatizar tarefas administrativas, mas para reposicionar o próprio Estado como uma máquina de eficiência, inovação e previsibilidade jurídica.
É notável que essa transformação esteja sendo liderada por um país jovem — fundado em 1971 — e não pelos centros tradicionais do poder tecnológico, como os EUA, Reino Unido ou Alemanha. Isso mostra como a geopolítica da inovação está mudando, com novos protagonistas emergindo fora do eixo Ocidente-centrado, dispostos a experimentar modelos que desafiam as estruturas institucionais do século XX.
O que o Brasil e o mundo devem observar
O experimento dos Emirados pode funcionar como uma vitrine para o futuro da governança. Se for bem-sucedido, é provável que outros países comecem a adotar sistemas semelhantes para acelerar reformas, revisar legislações obsoletas ou enfrentar crises emergenciais com mais agilidade. Se falhar — por falta de controle, viéses ou instabilidade —, servirá de alerta global sobre os limites da automação algorítmica em assuntos tão sensíveis quanto a legislação.
Para o Brasil, a lição mais importante talvez não seja “copiar o modelo”, mas sim começar desde já a discutir como IA e democracia podem coexistir. Como garantir que nossas futuras leis — ou as sugestões automatizadas de leis — respeitem os princípios constitucionais, os direitos humanos e os contextos sociais brasileiros? A resposta para isso não virá apenas da tecnologia, mas de um debate plural, transparente e democrático.
Conclusão: o futuro da legislação está sendo reprogramado. A questão é — por quem, e com quais valores?
O que os Emirados Árabes estão fazendo pode parecer ousado — até arriscado — mas sinaliza uma mudança irreversível na relação entre tecnologia e poder político. À medida que algoritmos assumem papéis mais centrais na formulação de políticas públicas, todos os países precisam refletir: como vamos garantir que a IA trabalhe a favor da sociedade — e não no lugar dela?