Nos últimos anos, a combinação entre medicina e tecnologia vem produzindo avanços que há pouco tempo pareciam ficção científica. Em julho de 2025, pesquisadores da Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos, anunciaram um marco histórico: pela primeira vez um robô cirúrgico equipado com inteligência artificial realizou sozinho uma operação em tecido humano, sem a interferência direta de médicos. O procedimento, uma colecistectomia (remoção da vesícula biliar), foi executado por um sistema chamado SRT‑H (do inglês Hierarchical Surgical Robot Transformer) e publicado na revista Science Robotics.

O que é o SRT‑H?

O SRT‑H é uma evolução do Smart Tissue Autonomous Robot (STAR), robô desenvolvido pela mesma equipe em 2022 que removeu a vesícula de um porco vivo. O novo modelo utiliza uma arquitetura em duas camadas. Uma camada superior interpreta comandos em linguagem natural e planeja as etapas da cirurgia; a camada inferior traduz esses comandos em movimentos precisos dos instrumentos. A comunicação com o robô é feita por voz, e ele registra cada orientação para melhorar o desempenho no futuro.

Para treinar o SRT‑H, a equipe reuniu cerca de 18.000 demonstrações em mais de 30 vesículas de porcos, incluindo situações em que erros foram inseridos de propósito para que o sistema aprendesse a se recuperar. Esse repertório foi essencial para que a máquina se adaptasse às variações anatômicas e a imprevistos típicos de cirurgias.

Como a cirurgia foi realizada?

O procedimento foi feito em um modelo de paciente humano (uma vesícula removida do corpo). A equipe dividiu a operação em 17 etapas – desde a identificação de ductos e artérias até o corte da vesícula – e permitiu que o robô executasse a fase mais longa e complexa, responsável por clipes e cortes. Os cirurgiões apenas supervisionavam e davam comandos simples por voz, mas não precisaram intervir no corte e na dissecção.

Segundo os pesquisadores, o SRT‑H concluiu essa fase com 100% de acerto em diferentes condições anatômicas e mesmo em cenários de emergência simulados. Apesar de a operação ter durado mais do que quando é feita por um cirurgião experiente, o resultado clínico foi equivalente.

Por que isso é importante?

O feito marca uma mudança de paradigma na robótica médica. Até agora, as cirurgias assistidas por robôs dependiam de comandos precisos do cirurgião humano – a máquina seguia os movimentos das mãos de um operador em um console. O SRT‑H, por outro lado, compreende o procedimento e toma decisões em tempo real, adaptando-se a imprevistos e corrigindo pequenos desvios sozinho. Axel Krieger, professor de engenharia da Johns Hopkins, afirma que essa capacidade nos aproxima de sistemas autônomos clinicamente viáveis.

Do ponto de vista médico, a tecnologia pode reduzir erros humanos, democratizar procedimentos complexos e aumentar o acesso a cirurgias em regiões onde há escassez de especialistas. Além disso, o uso de inteligência artificial pode permitir um treinamento contínuo: cada operação realizada contribui para aprimorar o algoritmo, gerando um ciclo de aprendizado que beneficia pacientes futuros.

Limitações e desafios éticos

Apesar do avanço, há muitos pontos a considerar antes que um robô opere pacientes vivos. A própria equipe ressalta que o SRT‑H ainda não foi testado em humanos e que deve levar pelo menos uma década para chegar às salas cirúrgicas. O ritmo mais lento em relação a cirurgiões experientes também indica que o sistema precisa ganhar eficiência.

Do lado ético, surgem questões importantes:

1. Responsabilidade: quem responde por um erro em uma cirurgia autônoma? Como registrar e auditar as decisões do algoritmo?
2. Segurança: como garantir que o software não seja comprometido por falhas ou ataques cibernéticos?
3. Acesso e custo: como tornar a tecnologia acessível a hospitais públicos e de países em desenvolvimento?
4. Aceitação social: pacientes e profissionais de saúde estarão dispostos a confiar a vida a uma máquina?

Além disso, é essencial que a inteligência artificial seja treinada com dados de qualidade e devidamente validados para evitar vieses e comportamentos inesperados. Assim como em outras áreas da IA, transparência e supervisão humana continuam sendo fundamentais.

O futuro da cirurgia robótica

Os cientistas planejam treinar o SRT‑H em outros tipos de cirurgias para ampliar suas capacidades. Como a arquitetura do sistema é baseada em transformadores – a mesma família de modelos que deu origem a ferramentas como o ChatGPT – existe a possibilidade de integrar dados de imagem, voz e texto, permitindo que o robô compreenda contextos cada vez mais complexos.

No longo prazo, especialistas imaginam um cenário em que cirurgiões atuem como supervisores de sistemas autônomos, concentrando-se nas decisões estratégicas enquanto máquinas executam tarefas repetitivas e delicadas. Isso pode liberar profissionais para atender mais pacientes e reduzir o tempo de espera por procedimentos.

Conclusão

O sucesso do SRT‑H na remoção autônoma da vesícula biliar é um marco que desperta entusiasmo e cautela. Ele mostra que a inteligência artificial pode ir além de tarefas simples e se tornar parceira dos profissionais da saúde, elevando o padrão de precisão e segurança nas cirurgias. Contudo, transformar essa inovação em uma realidade clínica exigirá anos de pesquisa, testes rigorosos, regulamentação apropriada e, principalmente, um diálogo aberto entre engenheiros, médicos, pacientes e autoridades.

Enquanto isso, cada avanço como este reforça a importância de acompanhar de perto as novidades em tecnologia e saúde. A medicina do futuro já está sendo construída, e compreender seus princípios e implicações é o primeiro passo para que ela beneficie a sociedade de forma equitativa e responsável.